sábado, 4 de outubro de 2008

Vidas secas, língua seca

Toda linguagem presume comunicação. Disso ninguém discorda. Mas o que ocorre com o homem que tem dificuldade de usar a linguagem verbal? Por trás de um ambiente seco e castrativo, como é o do sertão nordestino, Graciliano parece oferecer alguma resposta para tal pergunta.

Em “Vidas Secas”, retirando-se todas as características narrativas como personagens, tempo e espaço, resta ainda um tópico notadamente distinto dentro da prosa graciliana: a influência determinista do ambiente físico sobre a linguagem e as conseqüências dessa sobre a vida humana.

O primeiro indício do fator comunicativo será encontrado nas próprias personagens. Dos princípios de Lingüística, ensina a língua portuguesa toda a comunidade que envolve o indivíduo, mas o que ocorre quando todos os que envolvem o indivíduo não falam? O que é previsível: nada! Nada ocorrerá, o indivíduo também não falará. Assim procede com Fabiano e a sua família. O vaqueiro tem dificuldade com a sua língua. Sinhá Vitória, embora domine um pouco mais, também sente tal dificuldade. É de se esperar que os meninos – o mais novo e o mais velho – também não saibam se expressar bem.

Fabiano, por exemplo, tem falas escassas durante a narrativa, mas, contando-as, contabiliza-se 7 vezes a interjeição “An!” significando indignação do personagem frente aos desafios de sua vida severa.

E não pára por aí: outro tipo de frase que Fabiano constrói é baseado em tautologias: “Festa é festa” ou “Governo é governo”. Observe que as frases são formas simples: um único substantivo repetido duas vezes interligado pelo mais simples dos verbos. Fabiano – como todos na obra – não domina o código. Assim como os animais, Fabiano prefere gesticular que falar.

Além disso, mesmo que Fabiano possuísse um vocabulário rico e uma sintaxe impecável, não haveria muito a ser dito. A família sertaneja fixada sobre os princípios do nomadismo não encontra muito do que falar em pleno sertão nordestino. Os assuntos são minguados como a água ou o alimento: a seca, as vacas, o patrão...enfim..o mínimo possível. Não há de fato necessidade de muitas palavras para falar sempre dos mesmos assuntos.

Capítulo tocante, ainda nessa questão, é “Inverno”. Fabiano tenta contar uma estória para os meninos, pois as crianças estão assustadas com a chuva torrencial que ameaça invadir a casa. Ocorre, entretanto, que ele é incapaz de realizar o feito: contar uma estória é fugir dos limites da vidinha cotidiana e Fabiano não possui linguagem suficiente para falar do que não é linguisticamente imediato na sua vida, como por exemplo, da felicidade.

Tal aspecto da incomunicabilidade também é trazido por esse exímio narrador na divisão dos capítulos: cada capítulo é independente e funciona como um quadro. Note que cada personagem tem um capítulo exclusivo para si, e curiosamente os capítulos são independentes. Quer se dizer com isso que nem mesmo os capítulos com o nome das personagens conseguem dialogar entre si. Nem mesmo o mínimo. Prodígios de Graciliano.

Mas qual as conseqüências dessa total ausência de linguagem? A violência é claro. O homem que não se comunica bem é mal compreendido, quando mal compreendido, torna-se manipulável e marginalizado pela sociedade. Pior, vive a mercê e é vítima dela.

Ocorre dentro da obra cena notável: O menino mais velho pergunta para Sinha Vitória o significado da palavra “Inferno”. Como a mulher não sabia explicar, acaba por dar-lhe alguns tapas.

Ou ainda quando Fabiano tenta utilizar-se de um vocabulário erudito e acaba por apanhar , além de ir para a cadeia simplesmente por não saber dizer não ao soldado amarelo. Casos da incomunicabilidade.

Saber se expressar com alguma fluência, mesmo que somente em língua verbal, é o mínimo necessário para a vida com sociedade. A sua ausência retrocede o homem ao mundo animal, ignotos das palavras e repletos de gestos. Dominar um código é, antes de tudo, processo civilizatório.

Mas a preocupação de Ramos não é mostrar o homem sertanejo socializado e perfeito. Isso seria Romantismo. Em seu romance de denúncia social, o autor animaliza todos os personagens humanos da forma mais simples possível: minimizando suas falas.

Dessa maneira, retirando as falas dos humanos, o autor aprozima-os do mundo bestial. A conclusão a que se chega é a de que o homem sem expressão é um animal e, portanto, alheio a tudo que é social.

Felizmente, na obra a situação é facilmente contornada. Graciliano utiliza um narrador deveras habilidoso para, com uma voz erudita, com vocabulário amplo e sintaxe impecáveis, dar voz a esse povo. É a voz do narrador que traz os pensamentos das personagens para o leitor. Ainda mais importante: é o narrador quem traduz todas as imagens desconexas da mente de cada um deles e oferece a roupagem adequada a idéias.

Sem a linguagem dos personagens, o romance conseguiu ser tudo o que é. Sem o narrador, o romance não conseguiria transmitir nem mesmo farpas da essência humana.