terça-feira, 19 de agosto de 2008

Machado e o mistério da Missa

Machado de Assis é sutil. Sua ironia, segundo Candido, é refinada tanto quanto requintada, isso porque, enquanto Machado faz a sua crítica utilizando narrativas, apenas os mais conscientes da condição humana são capazes de entendê-lo.

O enredo da obra Missa do galo é simples. Nogueira, em idade adulta, decide contar um fato obscuro de sua adolescência. A estória então se inicia com o narrador esperando pelo vizinho para ir à missa do galo, já que nunca fora à uma na corte.

Enquanto espera, Nogueira lê a obra "Os três mosqueteiros". Conceição, a senhora casada que abriga Nogueira, sobrinho de seu marido, em sua casa, se aproxima em altas horas da noite e conversa com o Narrador-personagem (Nogueira). Por fim, o vizinho chega e o protagonista vai a festa.

A estória parece corriqueira, mas Machado a trata de tal forma que os traços nítidos dos fatos ficam ofuscados pelo viés do narrador-personagem tanto quanto pelo julgamento do leitor.

No inicio, através de uma prolepse inicial, o narrador diz "Nunca pude entender..." mostrando que aquilo que aconteceu há tanto tempo, ainda é motivo de reflexão até a sua maturidade. E é exatamente isso que faz com que o leitor se interesse pela averiguação de um caso e descobrir um pouco mais de si mesmo.

Então, durante a narrativa muitos são os detalhes que confundem a cabeça de Nogueira e ainda mais a do leitor quando a pergunta que se abstrai é "tentou Conceição seduzir o sobrinho de seu marido?"

Por exemplo, Conceição já deveria estar dormindo, mas o que fazia ela, em altas horas acordada, somente com o garoto? E por que tanta preocupação em distrair (ou fazer companhia) ao personagem?
Além disso, há uma preocupação excessiva dela em não acordar a mãe dela com o volume da conversa. O que haveria naquela cena que ninguém pudesse ver? Ou seria a mãe dela uma vítima do sono leve que, uma vez acordada, custa a dormir?

As vestes dela também denunciam algo, pois, em um dado momento da conversa, o braço dela deixa-se desnudar (algo incomum para a época e um tanto quanto sensual), e ainda, quando conversam sobre insônia, a resposta da senhora é suspeita já que não concorda quando Nogueira pergunta se ela estava com insônia naquela noite.

Ou ainda é possível que ela queira se vingar do marido que a trai.

Entretanto, nada disso é certeza. E o que é exposto na obra pode não passar de coincidência, acaso ou acidente.

Curioso é que não há uma maneira de analisar esse ato e descobrir a resposta da pergunta feita a partir das ciências e teorias emergentes na época como o positivismo, pois a resposta seria a mesma: inconclusiva.

E dessa maneira, a única pessoa que pode concluir alguma coisa é o leitor. A partir do que cada um viveu, do que cada um experimentou, será possível uma leitura diferente pois Conceição deve passar, antes, pelo julgamento de cada leitor para se descobrir quais são as verdadeiras intenções dela.

Mas, julgá-la é correto? Durante a diegése, não se obtém informação ou intenção concreta uma vez que toda a obra é escrita a partir da visão de um narrador homodiegético com focalização interior e isso impede o narrador de se contar o que se passa dentro de Conceição.

O máximo que temos para julgá-la são as vagas e disformes lembranças que o protagonista tem a partir do que ele viveu.

Então a pergunta mudaria: Pode se confiar em um narrador-personagem que nada mais sabemos além do que ele nos conta? Nada se sabe do narrador... nenhuma confirmação se ele é bom ou mau, nem ao menos uma ficha de antecedentes criminais...é certo confiar tão facilmente assim nele?
Ou ainda, o senso crítico e a percepção de Nogueira estavam sóbrios? Não estaria ele inebriado pelo Espírito romântico contido em "Os três mosqueteiros" que lia já que, de início, julgara Conceição uma moça de traços românticos? Seus critérios de julgamento àquela época eram imparciais? Eram ao menos maduros?

Ou ainda, a lembrança do fato não poderia estar cheia de saudosismo e o fato ficou torto?
Também deve-se desconfiar de suas intenções: No início da obra, a única descrição que Nogueira oferece de Conceição 'é de que ela é uma mulher simpática, "Nem bonita, nem feia". E no final da obra, sua visão muda, e a moça se torna uma figura sedutora e provocante.

Durante toda a conversa, o personagem-narrador se esforça para ter muitos assuntos, não estaria ele, com isso, "pagando para ver onde tudo isso iria dar?".

No final, o vizinho aparece para levá-lo à festa. No dia seguinte, os dois agem como se nada tivesse ocorrido na noite anterior. Seria um pacto de silêncio sobre o ocorrido na noite anterior?
O que, de fato, ocorreu? Essas e outras perguntas sempre ficarão sem resposta, talvez, nem mesmo Machado de Assis as soubesse.

A sensação que se tem é que, ao final da obra, o leitor se cansa de tentar descobrir o que de fato ocorreu devido aos muitos viéses e permite que a sua consciência divague pelos caminhos que a narrativa o leva.

Todos os preconceitos, conceitos e verdades são postos à mesa para que se possa modificar alguns, envergonhar-se de outros, e ainda, mudar certas verdades pessoais.

O que resta a fazer é deleitar se com a narrativa de coração e render a mente a Machado.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Os sofrimentos de Pessoa

Tudo vale a pena se a alma não é pequena? Eis uma das mais célebres frases que ecoa de Fernando Pessoa e que hoje verte tanto das bocas das pessoas que buscam impiedosamente por um pouco de motivação como parece escorrer junto com a água da chuva para dentro de todos os bueiros e bocas de lobos em qualquer ruela.

Todas as pessoas do mundo acreditam no verso. E não é para menos. Desde sempre, o homem parece compartilhar de um ideal e que este, OBRIGATORIAMENTE, o deva levar para o divino, para o celeste, para o epifânico, enfim, para o alto.

Infelizmente, a ilusão é de que, apenas por se querer subir um pouco mais, a alma não será pequena, ou seja, torna-se apenas uma maneira egoísta e mesquinha do homem se tornar menos.
Tal assertiva parece incorrer em que todos, só por tentarem, são melhores.

Infelizmente, não são. Só seriam melhores se um dia viessem a ler o verso inteiro. A parte doce todos lembram, todos memorizam, todos escrevem como títulos em blogs, todos escrevem em cartões de aniversário e de amor.


Mas o resto, não. O resto do poema prende o homem à terra. O resto do poema é que é difícil de engolir. O resto é o que chamam de resto por que ninguém quer. O resto do poema, a parte marginal, é o que interessa:

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Quem quer passar além do Bojador, TEM QUE PASSAR ALÉM DA DOR. Isso é amargo. Dói. Pessoa sabia do que falava. Caeiro e Ricardo Reis também. Mandavam-nos Mensagem! Mas - o mais importante - é que o que revela, de fato, o tamanho da alma, é a capacidade de ir além na vida, ou seja, suportar a dor.

Ao contrário do que muitos vêem, o objetivo do verso não é ser um emaranhado de orações de auto-ajuda, mas antes de tudo, revelar que, o segredo de ser homem é sofrer. Niestche concordaria? Quem sabe? Mas na dor, o homem encontra o melhor de si. Ele invoca a Deus, ele ora, ele promete (e, quem sabe, até mesmo cumprirá!), mas o que é notável é que existe uma beleza inefável em sofrer.

Sofrer não é ruim. A dor não é ruim. São sinais. Sinais de que é necessário mudar, de que é necessário navegar. Quando Deus deu ao homem a dor, e disse que seria um castigo, Ele não imaginava que tal castigo seria simplesmente uma dádiva.

Pela dor, sabemos quem somos; pela dor, tomamos decisões; pela dor, sabemos até mesmo a hora de visitar um médico e um dentista. A dor, a dor, a dor... ah!!! A Dor!!!

A questão não é valer ou não valer a pena: a questão é estar ou não disposto a pagar o preço e o sofrimento. Werther estava disposto a pagar esse preço para ser quem foi. Inês de Castro também. Até mesmo o Gigante adamastor sofria.

E você? Está disposto?